O espelho é o mestre dos pintores
Para veres se a tua pintura, no conjunto, está em conformidade com aquilo que representas, pega num espelho e reflecte nele o modelo, e
compara esse reflexo com a tua pintura, e examina bem, em toda a superfície, se as duas imagens do objecto se assemelham... E ao
veres que o espelho pode, através de linhas, sombras e luzes, criar a ilusão do relevo, tu, que tens entre as tuas cores, sombras e luzes mais
fortes que as do espelho, se as souberes combinar como deve ser, a tua obra parecer-se-á sem dúvida, também ela, com a realidade vista
num grande espelho.
A pintura e os seus elementos
A pintura compreende duas partes principais: a primeira é a forma, ou seja, a linha que define as formas dos corpos e os seus pormenores; a
segunda é a cor encerada nos limites destas.
A pintura compreende duas partes principais: o contorno que envolve as formas e os objectos pintados - aquilo a que se chama desenho - e a
segunda, a que se chama sombra. Mas o desenho é de uma tal excelência que não explora apenas as obras da natureza, mas uma infinidade
de outras que escapam a esta... Por isso, concluímos que o desenho não é só conhecimento, mas uma energia divina capaz de reproduzir todas
as obras visíveis do Altíssimo.
Estudo de um Busto de Mulher, 1501. Sanguina sobre papel preparado cor-de-rosa.
A pintura mais digna de elogios é aquela que mais se parece com o que imita. Digo isto contra os pintores que pretendem corrigir as obras da
Natureza, aqueles, por exemplo, que representam uma criança de um ano, cuja cabeça devia corresponder a um quinto da sua altura, e que
a fazem corresponder a um oitavo; e apesar da largura dos ombros ser igual à da cabeça, eles fazem a cabeça duas vezes menos larga do
que os ombros; e assim dão a uma criança de um ano as proporções de um homem de trinta. E tantas vezes praticaram e viram praticar este
erro, e o hábito penetrou tão bem e fixou-se de tal modo na sua mente corrompida que eles se convencem de que a Natureza e aqueles que
a imitam cometem um grande erro por não fazerem como eles.
O que são a sombra e a luz
A sombra é a ausência de luz ou simplesmente a oposição dos corpos opacos que interceptam os raios luminosos. A sombra é da
natureza da obscuridade; a luz é da natureza do esplendor. Elas estão sempre junto dos corpos, e a sombra é mais forte do que a luz,
porque pode impedir absolutamente a luz e privar totalmente os corpos dela, enquanto que a luz nunca pode eliminar toda a sombra
dos corpos, pelo menos dos corpos opacos.
A sombra pode ser infinitamente obscura ou mostrar uma infinidade de matizes para o claro.
A sombra é a manifestação das formas dos corpos através destes.
As formas dos corpos não mostrariam as suas particularidades sem a sombra.
Manto para uma Figura Ajoelhada Vista de Perfil pela Direita
Os ombros devem ser sempre da cor do corpo a que pertencem.
Nenhum objecto nos surge na sua brancura natural, porque o local onde é visto o torna, a olho nu, mais ou menos branco consoante esse
local é mais ou menos escuro. Aprendemos isto com o exemplo da Lua, que de dia parece muito pouco nítida no céu, e de noite é tão
brilhante que persegue a escuridão como o Sol ou a luz do dia. Isto deve-se a duas coisas: a primeira é a tendência da Natureza para
mostrar as imagens coloridas tanto mais perfeitas quanto mais diferentes são as cores; e a segunda, que a pupila é maior à noite que de dia,
como foi provado...
Pormenor do Retrato de Cecilia Gallerani (Senhora com Arminho), 1490
A perspectiva é a lei racional segundo a qual a experiência nos mostra que todos os objectos enviam a sua imagem ao olho por vias
piramidais; e os corpos de igual grandeza formarão pirâmides mais ou menos pontiagudas consoante as suas respectivas distâncias.
Chamo «vias piramidais» às linhas que partem das superfícies e dos contornos dos corpos e se encontram, vindas de longe, num pequeno
ponto comum; chamamos ponto àquilo que não pode ser dividido de maneira nenhuma, e esse ponto, colocado no olho, recebe em si o
cimo de todas as pirâmides.
Existe outra perspectiva a que chamo aérea, porque as diferenças de cor do ar podem permitir-nos avaliar as distâncias respectivas de vários
edifícios cuja base é cortada por uma única recta, como se os víssemos do outro lado de um muro: imaginemos que eles parecem todos da
mesma altura por cima desse muro, e que queres mostrar que uns estão mais afastados do que os outros e representá-los num ambiente
bastante denso. Tu sabes que num tal ambiente, os objectos mais distantes que se vêem, como as montanhas, por exemplo, devido à
grande quantidade de ar que se encontra entre elas e os teus olhos, parecem azuis, quase da cor do ar quando nasce o Sol. Darás, portanto,
ao edifício mais próximo por cima desse muro a sua cor própria, e tornarás menos nítido e mais azul o que está mais longe. E aquele que
queres mostrar mais longe ainda, fá-lo-ás mais azul; e aquele que estiver cinco vezes mais longe, fá-lo cinco vezes mais azul. E com esta
regra os edifícios que parecem ter por cima uma linha do mesmo tamanho mostrarão claramente qual deles é o mais distante e consequentemente
(na realidade) maior do que os outros.
Pormenor de A Virgem com o Menino e Sta. Ana, 1510
Cores diferentes podem receber de uma mesma sombra um mesmo nível de obscuridade. É possível que cores de toda a espécie sejam
transformadas, por uma determinada sombra, na cor dessa sombra.
Isto está provado pela escuridão da noite nebulosa, onde não se distingue nenhuma figura ou cor de um objecto; e como a obscuridade
não é mais do que a privação da luz incidente ou reflectida que faz com que se distingam todas as figuras e cores dos corpos, é inevitável
que o efeito ou a percepção das cores ou figuras desapareça também quando a luz é totalmente suprimida.
A claridade favorável a cada cor
É preciso observar sob que aspecto é que uma cor é mais bela na Natureza: quando ela recebe reflexos, ou quando está iluminada, ou
quando tem sombras intermédias, ou quando as tem obscuras, ou quando é transparente.
Isso depende da cor de que se trata, porque diversas cores são mais belas sob aspectos diferentes; vemos assim que o preto é mais belo nas
sombras, o branco nas luzes, o azul, o verde e o castanho nas sombras intermédias, o amarelo e o vermelho na luz, o dourado nos reflexos e
a laca nas sombras intermédias.
Pormenor de A Madona do Cravo
Beleza das cores
Para fazer uma bela cor verde, pega no verde (em pó) e mistura-o com betume e conseguirás assim as sombras mais escuras. Depois, para
os verdes mais claros, mistura verde e ocre, e para o brilho, utiliza amarelo puro. Em seguida, mistura verde e açafrão-da-índia e faz um véu
por cima de tudo.
Para fazeres um belo vermelho, usa cinábrio ou sanguina ou ocre queimado para as sombras escuras, e para as luzes usa vermelhão puro e
cobre com laca fina.
Para fazer óleo bom para a pintura: uma parte de óleo e uma parte de terebintina destilada uma vez, e mais uma de terebintina destilada duas vezes.
Pormenor do Retrato de uma Desconhecida (La Belle Ferronière)", 1490.
Para as cores às quais queres dar maior beleza, começa por preparar um branco muito puro, e digo isto para as cores transparentes, porque
para as que o não são o preparado branco não serve para nada. E isto aprende-se, por exemplo, nos vidros de cor que, colocados entre a
vista e o ar iluminado, são de uma grande beleza, o que não acontece quando eles têm atrás de si o ar escuro ou outros negros.
Como se reconhece uma boa pintura e com que qualidades
A primeira coisa a considerar, se quiserdes reconhecer uma boa pintura, é que o movimento se coadune com o estado de espírito do ser que
se move; em segundo lugar, que o relevo mais ou menos pronunciado dos objectos à sombra se ajuste às distâncias; em terceiro lugar, se as
proporções (do corpo) correspondem às do todo; em quarto lugar, que a escolha das posições seja adequada à conveniência dos actos; em
quinto lugar, que o pormenor da estrutura dos personagens corresponda à sua condição, ou seja, membros frágeis aos frágeis, fortes aos
fortes, gordos aos gordos, etc.
Cabeça de Mulher
Como estudar os movimentos do homem
Os movimentos do homem aprendem-se com o conhecimento das partes do corpo e do conjunto de todas as posições dos membros e das
articulações; em seguida, fixa mediante algumas anotações estenográficas os actos das pessoas, com as suas particularidades, sem que
elas se apercebam de que as observas, porque se elas derem por isso, ficam intrigadas e o acto que antes ocupou todo o teu espírito perde
energia; por exemplo quando dois homens coléricos discutem, e ambos julgam ter razão, mexem com muita violência as sobrancelhas, os
braços e os outros membros, com gestos adequados às sua intenções e às suas palavras. Não conseguirá alcançar este resultado se lhes
pedires que refreiem essa cólera, ou outra paixão como rir, chorar, dores, espanto, medo, etc. Traz sempre contigo um pequeno caderno de
folhas de gelatina, e com a ponta de prata toma nota desses movimentos e também das atitudes dos assistentes e a sua distribuição; e isso
te ensinará a fazer composições. E quando o teu caderno estiver cheio, põe-no de lado e guarda-o para os teus projectos, pega noutro e
continua. Será uma coisa muito útil para a arte de compor, a propósito da qual farei um livro à parte que acompanhará o estudo das
figuras e dos membros separados e das suas diversas articulações.
Estudos de Bebés
Do riso e do choro e do que os distingue
Não darás ao rosto daquele que chora os mesmos movimentos do que àquele que ri, apesar de (na realidade) eles serem muitas vezes
parecidos; porque o bom método consiste em diferenciar, porque a emoção do riso é diferente da emoção do choro.
Naqueles que choram, as sobrancelhas e a boca variam consoante as diversas causas do choro; porque um chora de raiva, outro de medo e
alguns de comoção e alegria, outros de inquietação, outros de sofrimento e de dor e outros por piedade ou por desgosto de terem perdido
parentes e amigos; e entre estes choros, uns parecem desesperados, os outros moderados; alguns só deitam lágrimas, outros gritam e alguns
erguem o rosto ao céu e baixam as mãos com os dedos entrelaçados; alguns são tímidos e levantam os ombros na direcção das orelhas, e
assim sucessivamente, consoante as causas citadas.
Aquele que chora levanta as sobrancelhas do lado do dentro e contrai-as e faz rugas entre elas e por cima; os cantos da boca descaem; e
quem ri levanta-os e as sobrancelhas abrem e separam-se.
Cinco Cabeças Grotescas, 1490. Pena e tinta.
As figuras vestidas com um casaco não devem deixar transparecer as suas formas de modo a que o casaco pareça mesmo em cima da carne
(a menos que não te importes); mas deves pensar que entre o casaco e a carne há outras roupas que impedem que a forma dos membros
apareça a nu ou se note através do casaco. Quanto aos membros que fizeres transparecer, mostra-os aumentados, para que se adivinhem
as outras roupas por baixo do casaco, e não deixarás que se descubra a dimensão quase exacta dos membros, excepto nas ninfas ou nos
anjos, que se representam vestidos de tecidos finos e moldados pelo sopro do vento contra os membros destas figuras.
Estudo de Drapeado que Cobre umas Pernas. Pincel, bistre e realces de cor branca, sobre tela.
- In Leonardo da Vinci, Jean- Claude Frère, a partir de Léonard de Vinci, le «Traité de la Peinture», de André Chastel
«Sei muito bem que não sou letrado, e alguns presunçosos julgam que me podem envergonhar alegando que sou um ignorante. Que
corja de estúpidos! (...) Eles dirão que a minha ignorância das Letras (latinas e gregas) me impede de me exprimir sobre o tema que
quero tratar. Mas os meus temas, para serem expostos, exigem mais a experiência do que as palavras de outrem. E como a experiência
foi a mestra daqueles que escrevem bem, eu escolho-a como mestra e recorrerei a ela em todas as circunstâncias. Muitos julgaram que
têm motivos para me estigmatizar, alegando que as provas por mim avançadas contradizem a autoridade de certos autores que a sua análise destituída de experiência tem em grande conta, sem pensarem que as minhas conclusões são o resultado da experiência pura e simples
, a qual é a verdadeira mestra...»
«O Ar, assim que desponta o dia, enche-se de inúmeras imagens às quais o olho serve de amante»
«Quem espera da experiência o que ela não possui diz adeus à Natureza e à Razão»
«Na Natureza, não há efeito sem causa; compreende a causa e só terás que fazer a experiência»
«Quando eu pensava que aprendia a viver, aprendia a morrer.»
«Penso muito no fim, considero o fim em primeiro lugar.»
«Tu, ó meu Deus, tu vendes-nos todas as coisas boas, mas a troco de um grande esforço.»
«O tempo dura bastante, para aqueles que sabem aproveitá-lo.»
«Ninguém tem o direito de prender sem processo um ser vivo, seja ele homem ou animal. Cada um recebeu de Deus a liberdade, e ninguém lha pode tirar.»
(Pensamentos de Leonardo da Vinci)
BIBLIOGRAFIA:
- "Leonardo da Vinci", Jean-Claude Frère, Ed. Livros e Livros.